NOTAS SOBRE OS COMPOSITORES E AS OBRAS
A produção de música para violino é, em Portugal, esparsa e irregular, revelando da parte dos criadores (e do público) uma relação difícil com um instrumento quase que “estrangeirado” (é revelador o facto de, na nomenclatura oficial, ter permanecido, até meados do século XX, a “rabeca”). Ainda hoje são o piano e a voz quem enchem as salas de concerto.
Se já anteriormente encontramos algumas obras interessantes, é, sem dúvida, no séc. XX, que se revela a grande viragem no terreno da criação musical.
As obras que preenchem este CD são exemplos de boa escrita para o instrumento ao nível das melhores produções europeias. Um idiomatismo fluído que acompanha as tendências do seu tempo, no barroco, romantismo, impressionismo, neo-classicismo ou na expressão da mais recente contemporaneidade.
OS CRIADORES E A SUA MÚSICA:
Os elementos biográficos que PEDRO LOPES NOGUEIRA nos legou remetem-no para o limbo do quase anonimato – uma pequena referência num documento da Irmandade de Santa Cecília, da primeira metade do século XVIII. Deixou-nos, porém, uma completíssima e maravilhosa obra para rabeca, já considerada entre os mais importantes manuais produzidos na época para aquele instrumento. Interpreta-se o Prelúdio e Fantazia no 6º Tom (Fá M), repleto de invenção rítmica aquele, de energia e vivacidade esta última.
FRANCISCO de SÁ NORONHA notabilizou-se, no nosso meio académico (graças, entre outros, aos trabalhos de Luísa Cymbron) como criador dos primeiros exemplos da ópera “nacional”. Biógrafos mais próximos da sua época, como Ernesto Vieira, enfatizam, particularmente, a sua carreira de violinista virtuoso e compositor de notáveis páginas para esse instrumento. Uma imensa curiosidade e destreza autodidacta e breves contactos com a herança de Paganini, através do seu discípulo Camillo Sivori, permitiram a Noronha esgrimir trechos de enorme complexidade técnica e lirismo inventivo. Estas variações a três vozes constituem uma homenagem a Thalberg (um sério concorrente de Liszt) e ao seu famoso “piano a três mãos”. É feérica a transposição desta técnica (que consiste em tocar três planos musicais em simultâneo) para um instrumento monódico como o violino. Noronha realiza-o com verdadeiro panache.
Não sendo, porventura, das obras mais significativas de Mestre VIANNA DA MOTTA, esta Romanza, em Ré M, faz alarde de um requintado lirismo e notável consistência formal. Uma incursão central a Si b M permite ao compositor utilizar uma longa ponte harmónica no regresso à tonalidade mãe. A simplicidade esclarecida deste trecho faz-nos lamentar ainda mais o desaparecimento da sua Sonata para violino e piano.
O Romance de LUÍS BARBOSA (pai e primeiro mestre do violinista Vasco Barbosa) é uma deliciosa peça de encore, característica do repertório dos violinistas concertistas do princípio do séc. XX, particularmente interessante no desenvolvimento da paleta harmónica, denotando profundas influências do impressionismo francês.
O ciclo D' Aquém e d' Além-mar de CLÁUDIO CARNEYRO – ilustre violinista e compositor portuense – escrito entre 1925 e 1926, do Porto a Paris, foi o primeiro conjunto de peças que dedicou a sua esposa, Catherine Hickel, também violinista, que estreará a obra em 1926 nos EUA (Worcester). Revela-se um jovem compositor em busca de uma linguagem musical nacional, ainda sob forte influência do romantismo francês tardio de um Fauré ou Franck. A inspiração programática – alusão às viagens, ao mar, à saudade – não podia mais explicitamente navegar na nau pátria.
A descoberta deste Nocturno de JOLY BRAGA SANTOS constituiu para o autor destas notas uma muito agradável surpresa, impondo-se, em absoluto, a sua presença neste projecto. A obra explora sonoridades densas, um respirar profundo mesmo no registo ultra agudo do violino, ao serviço de um fraseado dolente, complexo e muito expressivo. Talvez a principal originalidade desta composição consista no frequente e muito inspirado recurso ao salto de tessituras, em rasgos de grande dramatismo.
O material exposto pelo piano é característico de um discurso cadencial, de tipo recitativo. A obra foi estreada em 1942 por Silva Pereira e João de Freitas Branco.
As Quatro Miniaturas, de FERNANDO LOPES-GRAÇA, foram compostas em 1980. Trata-se de quatro peças muito contrastantes em carácter e recursos discursivos que, à imagem das demais incursões do compositor na escrita para este conjunto instrumental, albergam momentos de grande inspiração melódica, um aturado trabalho rítmico e tímbrico, num virtuosismo esclarecido mas nunca ostensivo.
DANIEL SCHVETZ é a única presença não portuguesa neste projecto. Justifica-se não apenas pela sua longa residência entre nós – tendo gerado interessantes fusões de influências musicais – como por um dos critérios determinantes da minha escolha dos autores contemporâneos a incluir (e englobo aqui Schvetz, Viana, Vasques-Dias, Tinoco mas também Lopes-Graça): a amizade que a eles me une e alguns (por vezes muitos) anos de trabalho conjunto. Ejstake é uma peça onde abundam referências rítmicas latinas e uma vivacidade muito contrastante com o tradicional “gesto” nostálgico da composição portuguesa.
“A partir de uma série de desenhos feito pelo meu filho Pedro, com dois anos e meio, aos quais ele dava nomes vindos do seu imaginário compus uma série de quatro obras - Paskut, para violino e piano, Recherarat, para contrabaixo e piano, Os Cupc para violino, contrabaixo e piano e, finalmente, Ejstake, para violino e contrabaixo.” [nota do autor]
LUÍS TINOCO dedicou esta obra a Luís Pacheco Cunha em 1997.
“Embora o título possa sugerir um conjunto de três instrumentos ou uma forma tripartida, com efeito é escrito para um duo de violino e piano que tocam quatro diferentes secções. A ideia de "tríptico" surge como consequência da sobreposição de três vozes apresentadas pelo violino e pelas mãos esquerda e direita do piano. Este processo está presente ao longo das primeiras três secções, mas, chegando ao fim, as linhas horizontais tendem a misturar-se e, nos compassos finais, o violino toca um "canto longínquo" que dobra as notas agudas dos "clusters" do piano.” [nota do autor]
Cru é a terceira incursão do compositor CÉSAR VIANA no material de que terão sido feitos os sonhos – antes, os pesadelos – de D. Pedro e D. Inês de Castro. Depois das partituras para grande orquestra e grupo de câmara (oito elementos), esta versão para violino solo revela uma notável capacidade de síntese, de coesão programática e recria planos de idiomatismo que constituem novas fronteiras para o instrumento e seus intérpretes.
Esgrafitos, uma obra de AMÍLCAR VASQUES-DIAS, são formas de arte decorativa típicas da paisagem urbana alentejana, introduzindo elementos de cor forte que quebram a nitidez cruel das grandes superfícies brancas de cal. Esta composição desenvolve a energia emanante desse confronto de Branco / Contra o Branco culminando numa exuberante farândola de ritmo e cor.
ESGRAFITO (do it. sgraffito, sgraffiare, arranhar) ornamento nas fachadas dos edifícios. Obtém-se riscando (arranhando) com estilete ou com colher de alvanel um desenho na argamassa ainda fresca das paredes.
Notas de Luís Pacheco Cunha
NOTES
The production of music for violin in Portugal is sparse and uneven, revealing from the creators (and the public) a difficult relationship with an almost "alien" instrument. Nowadays still, only the piano and voice manage to fill venues.
Although some interesting works are to be found in the past, the XXth century is responsible for a major shift in musical creation.
The works included in this CD are examples of excellent compositions for the instrument, at the level of the best European productions. They denote a fluid idiomaticism that reflects the trends of their time - in the baroque, romanticism, impressionism, neo-classicism or contemporary eras.
THE CREATORS AND THEIR MUSIC
The biographical elements at our disposal about PEDRO LOPES NOGUEIRA are almost nonexistent - a small reference in a document of the Brotherhood of St. Cecilia, from the first half of the eighteenth century. Nevertheless he left us a complete and wonderful book for the fiddle, already considered among the most important manuals produced at that time for the instrument. The Prelude and Fantazia in the 6th Tom (F Major) are full of rhythmic invention and energy.
FRANCISCO DE SÁ NORONHA became notable in our academic world (thanks to the work of Luísa Cymbron, among others) as the creator of the first examples of "national" Opera. But early biographers (such as Ernesto Vieira) particularly emphasize his career as a virtuoso violinist and composer of remarkable pages for the violin. An immense curiosity, self-taught skills and brief contacts with Paganini’s heir - Camillo Sivori, endowed Noronha with enormous technical virtuosity, lyricism and invention. His Variations in three voices are a tribute to Thalberg (a serious rival of Franz Liszt) and his famous "piano for three-hand" technique. Noronha transposes this technique for the monodic violin with incredible panache.
Although not the most significant work of Master VIANNA DA MOTTA, this Romanza excels exquisite lyricism and remarkable formal consistency. A central section in B flat Major allows the composer to use a long bridge on the way back to the original D Major. The enlightened simplicity of this miniature makes us regret even further the disappearance of his Sonata for violin and piano.
The Romance of LUIS BARBOSA (father of violinist Vasco Barbosa) is a delicious encore, characteristic of the repertoire of concert violinists from the beginning of the XXth century. It is particularly remarkable the development of the harmonic palette, exposing a deep influence of French Impressionism.
The cycle From overseas by CLAUDIO CARNEYRO – a renowned violinist and composer from Porto - written between 1925 and 1926 - was his first set of pieces dedicated to his wife, Catherine Hickel, also a violinist. She was responsible for its première in the USA (Worcester), in 1926. Carneyro reveals himself as a young composer in search of a national language, still under a strong influence of French romanticism – mainly Fauré and Franck. The programmatic inspiration - allusions to sea traveling, the saudade – sail in very patriotic waters.
The discovery of this Nocturne of JOLY BRAGA SANTOS was a very pleasant surprise for the author of these notes. It explores the density of sound, breathing deeply even in the extreme high pitch of the violin, serving a plaintive phrasing in a very expressive yet complex way. Perhaps the main originality of this composition consists on the frequent and very inspired change of registers, adding to great drama.
The work was premiered in 1942 by Silva Pereira and João de Freitas Branco.
This Four Miniatures by FERNANDO LOPES-GRAÇA, were composed in 1980. These are pieces of very contrasting character and discursive resources that, like most other works the composer wrote for this ensemble, contain moments of great melodic inspiration, painstaking rhythm and timbre and a clear but never ostentatious virtuosity.
DANIEL SCHVETZ is the only non-Portuguese presence in this project. It is justified not only by his long residence among us - generating interesting fusions of musical influences – but also by the main factor determining my choice of the contemporary authors in this collection - the friendship that binds me to them and many years of working together.
In Ejstake there are abundant Latin rhythmic references and a very lively contrast with the traditional nostalgic "gesture" one tends to find among the Portuguese creators.
"Inspired by my two and a half years old son Pedro’s drawings, which he named freely from his imagination, I composed a series of four works - Paskut, for violin and piano, Recherarat, for bass and piano, Os Cupc for violin, bass and piano, and finally Ejstake, for violin and bass." [Author’s note]
LUIS TINOCO dedicated this work to Luis Pacheco Cunha in 1997.
Although the title might suggest a set of three instruments or a tripartite form, it is indeed written for a violin and piano duo, and consists of four different sections. The idea of the Triptych comes as a result of the superposition of three voices, presented by the violin and the left and right hands of the piano. This process is present throughout the first three sections but, towards the end of the piece, the horizontal lines tend to mingle and, in the final bars, the violin plays a "faraway chant" doubling the high notes of the piano’s "clusters". [Author’s note]
The Crude is the third incursion of composer CÉSAR VIANA into the dreams - rather, the nightmares – of D. Pedro and D. Inês de Castro. This version for solo violin - following the setting for large orchestra and chamber group (eight elements) - reveals a remarkable synthetic capacity and programmatic cohesion, recreating idioms that are new frontiers for the instrument and its performers.
Graffiti, a work by AMÍLCAR VASQUES-DIAS, are decorative art forms that are typical of the urban landscape of the Alentejo region. They introduce elements of strong color that break the cruel sharpness of the large surfaces of white lime. This composition develops the energy emanating from this confrontation of white / anti-white culminating in an exuberant farandole of rhythm and color.
Notes by Luis Pacheco Cunha
PARABÉNS....!, Luís!
ResponderEliminarUm abraço grande!